Conflito aparente de normas
Ao longo de vinte e cinco anos de atuação no Direito de Trânsito, verificamos que grande parte das peças acusatórias relacionadas ao Crime de Embriaguez ao Volante tem como fundamento o Artigo 306, parágrafos 1º e 2º do Código de Trânsito Brasileiro.
Em decorrência de tais denúncias, constatamos que muitas Sentenças Penais Condenatórias que tem como fundamento a mesma tipificação Penal (Artigo 306, parágrafos 1º e 2º do Código de Trânsito Brasileiro), sem a comprovação da Alteração da Capacidade Psicomotora.
Entretanto, entendemos que somente a influência de álcool, sem a comprovação da alteração da capacidade psicomotora, não configura o Crime de Embriaguez ao Volante.
Aliás, entendemos que a tipificação correta do Crime de Embriaguez ao Volante configura-se, tão somente, pelo caput do Artigo 306 e não por seus parágrafos.
Em nosso entendimento, os Parágrafos 1º e 2º do Artigo 306 são as formas de constatação da influência de álcool ou de outras substâncias psicoativas, mas não são a tipificação do crime.
Ademais, diante de tais constatações, pretende-se demonstrar, através do presente trabalho, a existência de um conflito aparente de normas entre o artigo 306 do CTB e seu parágrafo 2º.
Entretanto, para tratar sobre esse tema, faz-se necessário traçar uma linha do tempo sobre as diversas mudanças na lei de trânsito a respeito da Embriaguez ao Volante.
DAS MUDANÇAS NO CTB:
Desde a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro, a Lei 9.503/97 teve 07 (sete) alterações relacionadas à Embriaguez ao volante:
– Primeira Alteração:
Em 2006, houve uma primeira alteração pela Lei 11.275/2006, que alterou a redação dos Artigos 165, 277 e 302 do CTB.
– Segunda Alteração:
Em 2008, houve uma segunda alteração pela Lei 11.705/2008, mais conhecida como “Lei Seca”, que estabeleceu a “Tolerância Zero” para o uso de álcool na direção de veículos automotores.
A Lei 11.708/2008 alterou a redação dos Artigos 165, 276, 277, 291, 296 e 306 do CTB.
– Terceira Alteração:
Em 2012 houve uma terceira alteração através da Lei 12.760/2012, conhecida como “Nova Lei Seca”, que mais uma vez alterou a redação dos Artigos 165, 276, 277 e 306 do CTB.
– Quarta Alteração:
Em 2014 houve uma quarta alteração através da Lei 12.971/2014, que trouxe um agravamento nas consequências criminais para o Artigo 302 do CTB.
– Quinta Alteração:
Em 2016, a Lei 13.281/2016 trouxe uma nova infração de trânsito que não era prevista no Código de Trânsito original, para o condutor que se recusa a ser submetido aos testes ou exames previstos no Artigo 277.
– Sexta Alteração:
Em 2017 a Lei 13.546/2017 trouxe uma nova roupagem para as consequências criminais dos Artigos 302 e 303 do CTB.
– Sétima Alteração:
Por fim, em 2019, a Lei 13.840/2019 acrescentou o parágrafo 4º ao Artigo 306 do CTB, sendo esta a última alteração relacionada à Embriaguez ao Volante.
Mesmo diante de todas as alterações mencionados, vamos nos ater às alterações ocorridas quanto ao Crime do Artigo 306 do CTB:
Inicialmente, em 1997, com a entrada em vigo do Código de Trânsito Brasileiro, o Artigo 306 do CTB tinha a seguinte redação:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:”
De acordo com aquela redação, para que o crime fosse comprovado, havia a necessidade de demonstração e comprovação da exposição de dano potencial a vida de terceiros.
De tal forma que além de conduzir o veículo sob efeito de álcool, era necessário a exposição de perigo de dano para a configuração do crime de trânsito.
No ano de 2008, mais de 10 (dez) anos de vigência do CTB, houve a primeira alteração no caput do Artigo 306 pela Lei 11.705/2008:
A chamada “Lei Seca” trouxe a tolerância “zero” para o uso de álcool na direção de veículo automotor, estipulando uma quantidade/medida para a comprovação do Crime de Embriaguez ao Volante:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:”
De acordo com a nova redação, o crime de Embriaguez ao Volante passou a se um crime de mera conduta, não havendo a necessidade de comprovação da exposição de dano, entretanto, passou a exigir uma quantidade/media para a comprovação do crime.
Ocorre que as alterações no caput do Artigo 306 não pararam por aí: Em 2012, a Lei 12.760/12 trouxe uma nova redação ao caput do Artigo 306 que se contra vigente até o momento:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:”
Analisando a nova redação do caput do Artigo 306, concluímos que para a comprovação do Crime de Embriaguez ao Volante, atualmente, são necessários 02 (dois) requisitos: a) estar com a capacidade psicomotora alterada; e b) estar sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.
De tal forma, podemos concluir que: – Diante dos dois requisitos mencionados, quando um condutor for flagrado na direção do veículo e estiver sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa, sem comprovação de alteração de suas capacidades psicomotoras, não haverá comprovação do crime e o condutor responde somente na esfera administrativa.
DA INCLUSÃO DE QUATRO PARÁGRAFOS AO ARTIGO 306:
Além das alterações citadas que ocorreram no caput do Artigo 306, não podemos deixar de mencionar os 04 (quatro) parágrafos que foram acrescentados posteriormente ao Artigo 306.
– O primeiro parágrafo foi incluído pela Lei 12.760/12;
– O segundo e o terceiro parágrafos foram incluídos pela Lei 12.791/14; e
– O quarto parágrafo foi incluído pela Lei 13.840/19.
Note-se, que o caput do Artigo 306 foi alterado diversas vezes e como se não bastasse, teve a inclusão de quatro parágrafos.
Ocorre, que no nosso entendimento, as alterações e inclusões de parágrafos, especificamente, a redação do parágrafo 2º, afronta diretamente o caput do Artigo 306.
Vejamos a redação dos parágrafos 1º, 2º e 3º do Artigo 306:
“§ 1o – As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I – concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II – sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
- 2o– A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
- 3o– O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.”
Ao analisar a descrição do parágrafo 1º do Artigo 306, concluímos se tratar das “formas de constatação da influência de álcool” prevista no caput do artigo.
Entretanto, a influência de álcool é apenas um dos requisitos do Crime de Embriaguez ao volante e não a tipificação completa do crime.
Ademais, ao analisar a descrição prevista no parágrafo 2º do Artigo 306, concluímos que existe um conflito aparente com o próprio caput do Artigo 306.
Note-se, que o parágrafo 2º do Artigo 306 estabelece que: “a verificação do disposto nesse artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.”
Ora, se o caput do Artigo 306 estabelece dois requisitos para comprovação do crime de Embriaguez ao Volante, o parágrafo 2º não pode reduzir tais requisitos à uma única prova, seja ela testemunhal ou um teste de alcoolemia.
De acordo com o caput do Artigo 306, para comprovação do crime, faz-se necessário, além da comprovação da influência de álcool ou de substância psicoativa nas formas previstas nos parágrafos 1º e 2º, a comprovação da alteração da capacidade psicomotora.
Note-se, que não basta a comprovação da influência de álcool ou de substância psicoativa, deve-se comprovar a alteração da capacidade psicomotora.
Por fim, em 2019, a Lei 13.840/19 incluiu-se mais um parágrafo no Artigo 306:
“§ 4º – Poderá ser empregado qualquer aparelho homologado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia – INMETRO – para se determinar o previsto no caput.”
Nesta última alteração, o parágrafo quarto foi incluído ao Artigo 306 para estabelecer os aparelhos que poderiam ser utilizados para a comprovação da influência de álcool ou de substância que determine a dependência.
DA CONSTATAÇÃO DA ALTERAÇÃO DA CAPACIDADE PSICOMOTORA:
A Resolução 432/2012 do CONTRAN, em seu Anexo II, estabelece as formas de constatação da alteração da capacidade psicomotora do condutor:
RESOLUÇÃO 432/2012 DO CONTRAN:
ANEXO II:
“VI. Sinais observados pelo agente fiscalizador:
- Quanto à aparência, se o condutor apresenta:
- Quanto à atitude, se o condutor apresenta:
- Quanto à orientação, se o condutor:
- Quanto à memória, se o condutor:
- Quanto à capacidade motora e verbal, se o condutor apresenta
VII. Afirmação expressa, pelo agente fiscalizador:
- De acordo com as características acima descritas, constatei que o condutor acima qualificado, está ( ) sob influência de álcool ( ) sob influência de substância psicoativa.
- O condutor ( ) se recusou ( ) não se recusou a realizar os testes, exames ou perícia que permitiriam certificar o seu estado quanto à alteração da capacidade psicomotora.
VIII. Quando houver testemunha (s), a identificação:…”
O que se verifica é a existência de diversas formas para comprovação da alteração da capacidade psicomotora do condutor, que devem ser somadas á comprovação da influência de álcool ou de substância psicoativa para comprovação do Crime previsto no Artigo 306 do CTB.
DO ENTENDIMENTO DO TJ/SP:
Em 11 de março de 2021 a 12ª. Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ABSOLVEU um condutor flagrado na direção de veículo automotor estando sob efeito de álcool.
O condutor havia sido condenado em primeira instância, onde o juiz de primeiro grau entendeu que a comprovação do uso de álcool através de teste do teste de etilômetro seria suficiente para a condenação, sem levar em conta o Laudo Pericial que comprovou que todas as capacidades psicomotoras do condutor estavam preservadas.
Entretanto, em sede de recurso, por maioria de votos, a 12ª. Câmara de Direito Criminal entendeu que embora o teste de etilômetro tenha acusado o uso de bebida alcoólica, não houve comprovação da alteração da capacidade psicomotora do condutor, portanto, o condutor deveria ser absolvido.
Vejamos um trecho da citada decisão:
“Em que pese comprovadas materialidade e autoria delitivas, não vai ser possível manter a condenação do réu, por incidir atipicidade de sua conduta. O artigo no qual o réu foi dado como incurso criminaliza a conduta de “Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Pelo texto legal, não basta a mera constatação de que o agente ingeriu bebida alcoólica em teor acima do permitido (§ 1º, inciso I, do mesmo artigo), é preciso comprovar que a ingestão de bebida alcoólica influenciou em sua direção, reduzindo-lhe a capacidade psicomotora, o que colocaria em risco a coletividade.”
Note-se, que a decisão mencionada cita exatamente o que se pretende demonstrar com o presente trabalho, ou seja, que para a comprovação do Crime previsto no Artigo 306 do CTB, é preciso comprovar a “redução da capacidade psicomotora” e não somente a ingestão de bebida alcoólica acima do permitido.
E a respeitável decisão, a 12ª. Câmara de Direito Criminal vai além:
“… Se a pessoa está dirigindo de modo comum e tranquilo, sem despertar a atenção dos agentes da lei, ocorrendo apenas uma abordagem de rotina, seja de modo aleatório ou em uma blitz, por exemplo, sem que o motivo da abordagem seja a direção do condutor, não é possível se afirmar que a capacidade psicomotora se encontra alterada em razão da embriaguez, apenas pela concentração de álcool constatada em teste de etilômetro.”
Note-se, que a acertada decisão descreve que: se a condução do veículo estiver sendo realizada normalmente, sem despertar a atenção dos agentes de fiscalização, “não é possível se afirmar que a capacidade psicomotora se encontra alterada em razão da embriaguez, apenas pela concentração de álcool constatada em teste de etilômetro.”
A decisão proferida pela 12ª. Câmara pode ser acessada através Portal esaj do Tribunal de Justiça de São Paulo através do número 0007142-66.2018.8.26.0344.
DO ENTENDIMENTO DOUTRINARIO:
Diante deste cenário, podemos citar o entendimento do Professor Oderli Savedra Gomes, que sua obra, Código de Trânsito Brasileiro, 9ª. Edição, traz o mesmo entendimento tratado no presente texto em seus comentários a respeito do Crime previsto no Artigo 306 do CTB:
“Para que este crime se consume, há necessidade que o condutor esteja conduzindo veículo automotor com sua capacidade psicomotora alterada. Tal alteração pode dar-se através da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine a dependência. Observe que o crime não é mais de embriaguez e sim em relação a sua capacidade psicomotora, a qual deve estar alterada. Isso implica em dizer que a constatação da alteração da capacidade psicomotora deve ocorrer antes da própria abordagem do condutor para fiscalização e por sua vez da constatação da ingestão de álcool ou de uso de substância de determine a dependência, eis que serão os motivos para tipificarem a capacidade psicomotora alterada e ocorrerão após a abordagem e a fiscalização.” (Gomes, Oderli Savedra. Código de Trânsito Brasileiro, 9ª. Edição – Revisada e Atualizada 2021, pg. 319)
Em outra obra do mesmo autor “Crimes de Trânsito” o Professor Oderli Savedra Gomes descreve:
“Se por sua vez, o condutor estiver conduzindo o veículo após longo período sem repouso e tal circunstância vier a lhe prejudicar a forma segura de dirigir, no sentido de caracterizar alteração de sua capacidade psicomotora, não estará tipificado o delito, eis que ausentes a situação de alcoolemia ou drogadição, exigidas pelo tipo penal.” (Gomes, Oderli Savedra, Luis Carlos Paulino, Arnold Torres Paulino e Priscila Moron Gomes. Crimes de Trânsito, Editora Juruá, Curitiba, 2019, pg. 117).
Diante de tal entendimento, ressalta-se, mais uma vez, a necessidade do preenchimento de dois requisitos para comprovação do Crime do Artigo 306 do CTB: a) estar com a capacidade psicomotora alterada; e b) estar sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.
DAS CONCLUSÕES:
Por todo o exposto, concluímos que para a comprovação do Crime de Embriaguez ao Volante são necessários dois requisitos: a) estar conduzindo veículo com a capacidade psicomotora alterada; e b) estar sob a influência de álcool ou de qualquer substância que determine a dependência.
De tal forma que somente a comprovação da influência de álcool ou de outra substância que determine a dependência, sem a comprovação da alteração da capacidade psicomotora, não configura o crime previsto no Artigo 306 do CTB.
Da mesma forma, a comprovação da alteração da capacidade psicomotora, sem a comprovação da influência de álcool ou de outra substância que determine a dependência, não configura o crime previsto no Artigo 306 do CTB.
Por fim, concluímos ainda, que existe um conflito aparente entre o Parágrafo 2º e o próprio caput do Artigo 306.
Por Ronaldo Rodrigues Moura – Advogado – OAB/SP 367822